Como elemento equilibrador entre a contemporaneidade e os tempos
que já lá vão, sugiro a leitura do seguinte texto sobre Fataúnços
e de outras terras neste endereço:
http://www.archive.org/stream/sempassarafront00pimegoog/sempassarafront00pimegoog_djvu.txt
FATAUNCOS
De todas as notícias relativas á mlUgiatwre de sua
magestade a rainha D. Amélia nas Caldas de S. Pe-
dro do Sul^ uma, principalmente, me i€z impressão,
e de certo também a faria a todas as pessoas que não
desconhecem os costumes das povoações ruraes no
norte do paiz.
Reiiro-me aos pormenores da visita da rainha á
íreguezia de Fataunços, que pertence ao conedftio de
Vouzella, e fica a mais de trez léguas de Vizeu.
Foi a rainha convidada a honrar com a sua pre-
sença esta povoação, e por bem empregado daria sua
magestade o tempo que consagrou ao passeio a essa
aldeia, em que eu apenas posso descobrir um defeito :
o nome.
Fataunços nSo é, em verdade, uma denominação
harmoniosa e poética, mas sobram á terra predicados
que descontem a dissonância do nome.
É ameno o sitio, ubérrima a terra, saudável e
328
apradvely rica de agoa e de sombra como todas as
do yalle de LafSes. A opulência dos pastos enverdece
copiosamente a vastidão dos prados, onde se criam
vitellas qae passam por ser as mais saborosas de Por-
tugal.
Além do pittoresco da região, condecora-se Fa-
taunços com algumas relíquias archeologicas, taes co-
mo a Torre doa mouros, solar da familia Lemos. O
progresso levou á povoação o seu influxo civilisador
com a creação de uma escola e bibliothecai que em
1870 foram fundadas por um filho de Fataunços esta-
belecido como typographo no Porto.
Chama va-se esse benemérito cidadão José Louren-
ço de Souza ^ e justo é recordar o seu nome com a
louvor que merece.
A rainha, espirito educado no gosto e cultura das
bellas-artes, apreciaria certamente a formosura da
paizagem, e o pittoresco das ruinas da torjre mouris-
ca. Boa e carinhosa para com as creanças, folgaria
de encontrar ali uma escola construída segundo os
preceitos da pedagogia e da hygiene, enriquecida de
mais a mais pela adjuncção de uma bibliotheca.
Mas quero crer que a recepção que sua magestade
teve em Fataunços será, no espirito da rainha, uma
recordação indelevelmente saudosa.
1
Tinha as suas officinas typographicas na rua do
Bomjardim, d'aquella cidade. Foi edUor de muitas publica-
ções, taes como Almanach Píwíwen«e, Archivo jwridico,
etc.
327
Sstá sna magestade habituada, desde que entrou
em Portugal e soube conquistar as sympathías dos co-
raç3es portuguezes, a ser recebida por toda a parte
com enthusiasticas manifestações de carinho e respei-
to. ComtudOy nenhuma festa organisada em honra de
sua magestade poz ainda mais a descoberto a sinceri-
dade^da alma portugaeza na sua fé ingénua e espon-
tânea^ que ainda se conserva na vida simples e labo-
riosa da província, mas que totalmente se tem perdido
nos grandes centros de população do nosso paiz.
O Commercio do Porto, descrevendo as festas rea-
lizadas em Fataunços, dá um pormenor, que, por ex-
traordinário, não deve passar despercebido.
. «A entrada da localidade havia um arco ornado
de lenços de seda e fios de contas de ouro. Grrupos de
camponezas cantavam canç5es populares.]»
Foi justamente este pormenor, apparentemente
vulgar, que chamou e demorou a minha attençâo,
tanto mais que eu sou um dos raros portuguezes que
ainda não foram a Pariz, mas que menos mal conhe-
cem as provineias de Portugal.
Desculpe- se-me esta vaidade á conta de amor pela
terra em que nasci.
Deante doesse arco ornado de lenços de seda e de
contas de oiro eu descubro a cabeça e curvo-me res-
peitoso, porque elle é, na sua mais profunda significa-
çaO| a maior homenagem que a camponeza do norte
do paiz pode prestar a uma princeza querida e ama-
da por o povo.
Não se diga por espirito politico, que inteiramente
L^ai
328
affasto d'e8ta ligeira chronica e qae nXo é manjar que
me tente o apetite, que Fataunços jaz ainda n'uma
ignoraneia crassai comparável á que o arcebispo Dom
Frei Bartholomeu dos Martyres foi surprehender na»
alturas de Barrozo.
Como sabemos, ha vinte e cinco annos que em Fa-
tannços fnncoionam uma escola e uma biblictheca, e
um quarto de século de instracçSLo alguma luz deve
ter lançado no espirito d'aquelle povo, dócil e bom^
portanto disposto a deixar-se conduzir, se não para a
bibliotheca, ao menos para a escola.
O que ali ha nSo é por certo a ignorância primi-
tiva, mas a primitiva candura, mas a fé immaculada,.
a sinceridade espontânea da alma portugueza.
As camponezas de Fataunços, encantadas com a
rainha que tinham ido vêr a S. Pedro do Sul, quíze-
ram expressar-lhe toda a estima, todo o enthusiasmo
carinhoso que sua magestade lograra inspirar-lhes, e
para traduzir quanto sentiam não acharam melhor
meio do que arreiar com as suas mais ricas alfaias,
cem. todo o seu oirOy o arco por baixo do qual a rainha
devia entrar na povoação.
Os lenços de seda e as contas de oiro, dispostos em
bambolins certamente graciosos, representam toda a
historia da vida aldeã: os proventos colhidos no duro
trabalho dos campos, ao sol, ao frio, lavrando a terra,
ceifando a messe, esfolhando o milho, padejando o tri-
go, malhando o centeio, pastoreando o gado, fomejan-
do o pão, embarrelando o bragal, tecendo o linho, en-
xadando a gleba.
329
Todo o poema do trabalho aldeSo^ toda a cbronica-
da cansada vida rural pendia em estrophes d'aquell&^
arco de triumpho; escriptas na seda dos lenços e no oiro^
das contas.
Era como se as mulheres de Fataanços quizessem
disser á rainha : «Toda a nossa existência, com todos os*
nossos thesouros conquistados á força de trabalho, per-
tencem a vossa magestade. Vêde-os aqui^ para que os
honreis contemplando-os.» .
Nenhum arco de triumpho escuipturado em mar*
more valeu ainda a significação d'aquelle arco.
 camponeza do norte do paiz é ciosa, avara das
suas galas, especialmente do seu oiro. Mata-se para
conquistal-as, e procura conserval-as como á própria
existência. Não se desfaria d'ellas para comprar um
palácio, por mais barato que lh'o quizessem vender ;,
mas da melhor vontade as emprestou para vestir fes-
tivamente com os seus lenços e com os seus collares o
arco por onde a rainha devia passar.
Chega a ser encantadora esta sincera homenagem.
E ao mesmo tempo demonstra a honestidade dos-
costumes campestres do norte do paiz — a ausência
completa de gatunos, que pudessem pôr em risco a se-
gurança dos cordSes de oiro das camponezas.
Não faltou uma só conta, pela simples razão de não
appareoer gatuno algum. E não appareceu, pela razão-
ainda mais simples de os não haver em Fataunços.
Ali vive-se trabalhando, lidando na industria pri-
mitiva da humanidade : a agricultura. Â terra é a
grande officina explorada por toda aquella população^
830
rústica. E as alfaias, as jóias que ali estavam expos-
tas eram sagradas, porque representavam os tropheus
do trabalho, os despojos opimos da eterna batalha feri-
da contra a terra subjugada.
Em Lisboa, n'esta occasião em que se preparam
as festas antoninas, os arcos da rua do Oiro — que
tanto ^oiro poderia exhibir — sSo de ferro. Os cestos
<5om que estão gaveados os mastros da rua dos Ke-
trozeiros sSto de palha. . . apenas doirada. A bisarma
monstruosa das escadas de Santa Justa é uma coisa
que não valeria a pena roubar, e ainda menos cons-
truir. Nâo ha, cautelosamente, nada de bom e valioso
que os gatunos possam roubar, porque, se houvesse,
nem Santo António lhe valeria.
Em Fataunços o arco era de oiro^ e nâo faltou
uma só conta quando a festa acabou!
Ó Fataunços ! ó ditosa e honrada terra, onde o
Sacarrâo é um mytho extranho, de que se ouve fallar
com terror pela ideia associada da rapinagem alfaci-
nha, de que esse grande cabo de guerra policial tem
sido, por tanto tempo, o perseguidor heróico !
A rainha pode dizer que viu em Vouzella um re-
talho do paraíso terreal, sem a serpente bíblica, que
tentasse os camponezes a colherem o pomo de oiro
prohibido, e pode ainda dizer mais que viu e ouviu o
coraçSo portuguez palpitar no peito de uma população
ainda não degenerescida moralmente pelas ruins paixões
de que enfermam as cidades policiadas.
As mulheres de Fataunços,» em vez de estarem
inquietas pelos seus lenços e pelos seus cordões, can-
331
tavam tranquillas, em honra da rainha, as cançSes
populares da sua terra.
Sentiam-se felizes por terem enfeitado esse arco de
triumpbo com toda a riqueza das suas arcas.
E nenhum gatuno-Mephistopheles sorria velhaca-
mente por de traz das arvores, espreitando a occasiâo
de arrancar dois lenços de seda e dois cordões de oiro.
Manifestamente, a rainha comprehendeu a extra-
nha originalidade de tudo o que tinha presenceado
em Fataunços. Partiu d'ali encantada e commovida.
O Commercio do Porto concluo a sua narração
dizendo :
«cEm Fataunços tocou a philarmonica d'aqui, e na
despedida sua magestade a rainha, 'Vivamente impres-
sionada, dizia não esquecer aquella localidade, onde
prometteu voltar, e emquanto avistou Fataunços ace-
nava da carruagem com o lenço.»
O lenço da rainha, despedindo- se dos lenços que
ficavam pendentes do arco, dizia certamente no silen-
cio eloquente de uma separação saudosa : «Nunca tinha
visto isto, e nunca mais o poderei esquecer.»
Junho de 1895.